(…) «3.2. Arca de Noé – III classe
A síntese desta obra está de certa forma contida na espécie de prefácio que a sua edição inclui, na qual o autor explica o título algo enigmático: Arca de Noé – III classe refere-se à terceira e última divisão da célebre arca, na qual “é ponto de fé que embarcou a bicharada plebeia que aceitou Noé como amo, a saber: o burro, o cavalo, o elefante, a girafa, o macaco, o cão, o gato, o porco, a vaca, o coelho, a cabra, o galo, ralos, grilos, o compadre José Barnabé Pé de Jacaré e sua consorte Feliciana Luciana.” (p. 8).
Com efeito, trata-se de um conjunto de seis histórias em que todos esses animais tomam parte, por vezes associados a plantas da horta (como acontece na primeira, intitulada “Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia”). Geralmente de estrutura simples, a intriga constitui uma oportunidade para o retrato vivo e atento da vida animal. A vasta gama de bichos surge-nos nas situações mais diversas: em diálogo perante o inusitado crescimento de uma abóbora que ameaçava destruir a habitação de Mestre Grilo (primeira história); no seio de uma companhia de saltimbancos em que os desentendimentos entre um elefante e um macaco que gostava de pregar partidas são quase constantes (“História do macaco trocista e do elefante que não era para graças”, em que voltamos a encontrar o urso Mariana); em franco conflito (“História do Coelhinho Pardinho que ficou sem rabo”, (…); ou ainda reunindo os seus esforços para recuperar um tesouro (“História de Joli, cão francês, que boa caçada fez”). As duas restantes histórias serão consideradas à parte pelo facto de terem particularidades que as distinguem claramente das anteriores.
Tratando-se embora de textos muito simples, encontram-se nesta obra muitos dos recursos expressivos que tivemos oportunidade de observar no Romance da Raposa. Assim, temos o homeoteleuto originando epítetos humorísticos com que os animais se brindam mutuamente: “Patudo, orelhudo, nada lãzudo, tromba de canudo, andas ou fazes que andas?” (p. 32); “Girafa, gargalo de garrafa, mastro de cocanha, pernas de aranha!!!” (p. 42); “Elefante, bargante, besta importante!” (p. 42); “Coelhinho pintalegrete,/ Nem rabo nem galhardete” (p. 70).
Temos também um ou outro exemplo de curiosas metáforas colocadas ao serviço da descrição de uma característica física dos animais: “os coelhos marchavam atrás dele, animosamente, sem fazer contudo o mais pequeno rumor, o que pouco lhes custava dispondo como dispunham de solas silenciosas nos pés” (p. 54); ou comparações ainda mais surpreendentes pela sua originalidade e exactidão: “Os oh! e os ah! rebentavam como rolhas de champanhe nas bocas abertas” (p. 132). (…) »
Francisco Topa in Em torno da obra “infantil” de Aquilino Ribeiro (originalmente publicado em Rurália. Arouca.1992: 115-147)
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