ler Aquilino Ribeiro

"Mas, em qualquer altura, alguém que tenha a inclinação solitária, ou atenta, ou simplesmente erudita, abrirá um livro de Aquilino (…) e amará o seu verbo.» A.Bessa-Luís

“A noite foi dobando e começaram os galos a cantar…”

«A noite foi dobando e começaram os galos a cantar. Primeiro deitou alvorada o galo da Rita Cismas, aquele churro galaroz com esporões de guerra e polainas de montador, crista em serrilha, e uma face branca, glabra, acima duns barbilhões tão compridos e vermelhos que parecia andar sempre a rir-se do mundo, o mariola. Cantou uma vez, e logo à sua solfa cheia, consolada, de cónego da Sé, respondeu em falsete o pernaltudo da Rosa Salamim, que tinha um penacho mais rútilo e vistoso que mestre de filarmónica. Depois atirou o alamiré o seu galaripo de pernas de retrós, que contava menos de ano e já arrastava a asa às frangas. E logo do poleiro do Zé da Ponte, outra garganta grave, meio fanhosa, de velho frascário, trauteou uma gargalhada. Mas o galaripo não era bicho para embaçar e, uns após outros, como por achincalhe, ficou soltando esganiçados e vibrantes quiquiriquis. Agora, mais além, acordava o galo do Rabecas, crista talhada em papoila, pernas grossas e bem calçadas, o ai-jesus das fêmeas e o terror dos parceiros. Plantado em aparato de batalha diante do galo da Rita Cismas, o único que lhe fazia sombra, com o olhinho em lume, o topete eriçado, a plumaceira de furta-cores a faiscar em labareda, uma águia real não inculcava mais soberbia. Gordo como lontro, também não ficava mal com orelha de porco e feijão manteiga a temperar a caçoila dum cristão! O grande goelas de odre salvou três vezes e, com uma fatuidade digna, emudeceu. Umas após outras, em tom de réplica, de despique, de quem cumpre um dever, acertando a gama, atropelando-a, soltaram a sua partitura as capoeiras. Ao contrário do canto da meia-noite, que é um grito de alerta, e do cantar do segundo sono, uma salmodia em matinas, a ária da manhã era um desatar de fanfarra, de esplêndida fanfarra, difundindo por céu e terra exultação e claridade.

Ainda nas vidraças não pintava o dia, mas não podia vir longe, pois estavam em alvoroço os poleiros. Que os galos deitassem bando à sua vida, cantassem por cantar, ou entre eles houvesse coisas que dizer – altos arcanos de Deus? Pela certa que os primeiros cocoricós significavam duns para os outros: Bons dias! Bons dias! Depois, a transmitir-se, talvez, que tudo ia bem, se dormira o sono dos justos na capoeira, e o mundo lá continuava como dantes, com muita luz, com muita terra para esgaravatar. Quem sabe lá se não cantavam com a prosápia de esporear a noite, obrigá-la a correr, como pastor às chibatadas a um rebanho de cabras pretas?! Ou então que alimentassem a toleima, ainda maior, de que o sol os ouvia e, acudindo ao chamo, despertava a casa, despertava a dona, afugentava para longe o teixugo e a raposa e alumiava no cisco o grãozinho de painço e o verme reboludo com que faziam boca doce às frangas lambisqueiras?! Tudo era admissível na sabedoria do Criador!

[…]
– Eu canto – respondia um ao largo – e a comadre raposa deita a fugir.
– Eu canto – tornava outro – e o Sol deita a galopar pelas estradas do céu.
– Eu canto, e não há galinha que me ouça que não fique a suspirar por mim! – dizia um terceiro.
– Bazófia! Bazófia! Na minha bandada sou rei! Viva quem é rei!
– Viva mas é o rico dia que está a romper!
– Louvores ao Senhor que está a romper! Viva! Viva! E erguiam todos nos mais joviais cocoricós.

A velha ia assim traduzindo em rimance aquele latim das capoeiras, a par e passo que as contas puídas rolavam em seus dedos cascudos. Em plena desgarrada, um passarinho que tinha garganta de anjo desatou também a trinar. Devia ser a toutinegra, leve de sono e mais matutina que o melro, no quintal da Salamim. Era a sua uma vozinha espevitada, satisfeita, com requebros lânguidos e volatas agudas, espécie de padre-nosso pequenino rezado por uma criança. Vozeiravam os galos mais forte, e a toadilha prosseguiu, segura e maviosa como fio de água cadente no meio do arraial. E ela interrompeu a coroa a ouvir a arieta, que derramava sobre a terra cravos, açucenas, lírios brancos, e todas as flores de rosicler. A janela, porém, continuava postada como um carcereiro a noite negra, sem lua nem suspeita de arrebol.

[…]
Os galos lá iam na sabatina, e com o passarinho melodioso outros tinham entrado a cantar. Eram os pardais, os pardais dos telhados, da igreja, dos prados, essa corja de moinantes que vinham afoitos para volta dela apanhar as migalhinhas quando comia, havendo por certo chegado à conclusão de que era entrevada e não lhes podia fazer mal. Ui! e que música? Todos à uma: piu-piu-piu; xarriu-xiu-xiu, parecia escola de meninos malcriados ou o mercado dos quinze no seu auge. Louvado fosse o Senhor, todos celebravam a madrugada!

Reparando na vidraça, viu o pano da aurora colado contra ela, lívido, estanhado, sem profundura, como a água de rio turvado pelo vento. E, interrompendo devaneios e devoções, recitou a oração da manhã:
Bendita seja a luz do dia, bendito seja quem a cria; bendita a água das fontes, bendita a urze dos montes; bendito o linho na estriga, bendito o pão na espiga e o pão alvo já cozido; bendito o rico e o desvalido; bendita a ovelha que dá a lã, e o arado que lavra a chã; bendita a Virgem Santa Maria, para que nos dê um bom dia, e na hora da nossa morte nos assista e nos conforte, nos dê graça, nos dê luz, ora e sempre, amém Jesus!

Lá fora, os animaizinhos do Senhor continuavam em despicado arraial. Ouvia-se já o melro tocador de flauta e o cuco solista de trompa. Aguardariam as rolas um bocadinho mais de claridade para romper na sonatina. Agora os galos erguiam agudíssimos hossanas, como se celebrassem uma vitória. O piar dos pardais era missa pegada: todos os padres da diocese a rezar o quírie.»

Andam os faunos pelos bosques (Círculo dos Leitores, 1983)- pp.47,48,49,50

 

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