Comentário: Lê- se o texto com agrado, conhecendo-se e apreciando-se a picardia iconoclasta do estilo de VPV, não podendo deixar de concordar sobre a apreciação certeira do carácter imoral e pouco edificante da “matreira raposa”. Leio com agrado até quase ao fim. Até aos considerandos depreciativos sobre o valor da prosa de AR. Como felizmente recriminou Pedro Mexia (ver nota) «Dizer que Aquilino é um escritor “medíocre” é uma bojarda. Sobretudo vindo de quem já elogiou Clara Pinto Correia.»
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«A mãe lê ao filho doente uma história infantil. Só falta dizer que a voz da mãe é doce e que o filho, ardendo em febre, a ouve com os olhos muito abertos. As propriedades apaziguantes do amor da mãe e a febre, muito boa para dissolver as fronteiras entre o fantástico e o real, fazem que o filho se lembre da história até ao fim da vida, com as emoções apropriadas. É este o estereótipo da descoberta do primeiro livro: exacto, porque as mães antigas (da classe média) aproveitavam as doenças dos filhos para lhes ler coisas; e também tão repelentemente edificante como seria para desejar.
Aconteceu comigo. Com uma pequena diferença a que atribuo alguma importância: a heroína da história que a minha mãe me leu, por inadvertência ou, esperemos, por desígnio, era uma criatura magnífica sem uma única, solitária, virtude. Assassina, traidora, ladra, mentirosa, vigarista, gabarola, promíscua, anárquica e ateia, Salta-Pocinhas, “raposeta matreira, fagueira e lambisqueira”, entrou por ali dentro na sua santa glória de animal predatório, disposta a dar cabo dos outros para encher a barriga ou consolar a alma, sem remorsos, sem desculpas e, sobretudo, com o irreprimível prazer da caça e o legítimo orgulho das suas criminosas habilidades.
O princípio da carreira de Salta-Pocinhas é instrutivo. Posta na rua pelos pais, já fartos de a sustentar, foi largada no mundo com o conselho explícito de conduzir a sua “vidinha segundo as regras do amor pelo” (ao pêlo dela, entenda-se). Não se esqueceu deste bom conselho. Andava há três dias pela floresta, esfomeada e sem toca, quando ouviu dizer que o texugo Salamurdo “pilhara pata”. Muito bem: descobriu a morada do texugo e pediu-lhe a pata. Primeiro com humildade: “Ó meu rico senhor, tenha dó.“ O texugo não teve. Salta-Pocinhas passou à invectiva: ”Ó texugo Salamurdo, narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! … Larga a pata! …” O texugo não largou e, como cidadão respeitável, resolveu ir queixar-se à autoridade, o lobo Brutamontes. A raposa seguiu-o e, pela conversa de Salarmurdo com Brutamontes, ficou informada de que o lobo estava com dores de dentes.
Logo que, garantida a manutenção da ordem, Salamurdo se retirou, Salta-Pocinhas apresentou-se a Brutamontes e persuadiu-o de que o melhor remédio para a dores de dentes consistia em “pele de texugo ainda quente, acabadinha de esfolar”. O lobo, estúpido como compete à autoridade, partiu à procura de Salamurdo. Salta-Pocinhas assaltou-lhe imediatamente a dispensa onde existiam uns cordeiros e depois certificada a oportuna morte de Salamurdo, instalou-se na toca dele, onde existia a pata. Perfeito.
Por tais métodos Salta-Pocinhas se estabelece na sociedade e, por eles, dali em diante sobrevive. É consolador verificar que, neste romance, em que os bichos falam, a heroína mata pessoas, para comer ou por conveniência política. Não mata um simples coelho, animal e anónimo, mata um coelho adolescente a quem chama “meu menino” e meu querido” e promete levar a casa da mãe, para o persuadir a sair do buraco. Ele sai e “as palmas aveludadas” da Salta-Pocinhas caem-lhe em cima e “armarfanharam-no”. Como noutra altura, não atrai um gato bravo a uma ratoeira, armada para ela, atrai o gato bravo, escrivão da comarca, de quem, aliás, não gosta. Nenhuma das suas esplendorosas torpezas se deve confundir com costumes exclusivos de bichos: são todas aplicações estritas da regra ecuménica do “amor ao pêlo”. A moral de Salta-Pocinhas é, ao mesmo tempo, a moral do oprimido, cuja honra está em ficar vivo, e a moral do mais puro liberalismo, que, precisamente, em nome de Darwin, não distingue entre o homem e a natureza.
Nestas matérias, a CIP e os oráculos da iniciativa privada podiam aprovar a raposa. Mas Salta-Pocinhas exibe a sua heterodoxia de maneiras menos pacíficas. É má mãe: com os filhos cheios de fome, começa por caçar para ela. Detesta crianças, Deus a abençoe, e já velha, feita ama de raposinhos com pais ausentes, não hesita em roubar-lhes da boca a “ave tenra ou o lebracho de leite”. Eles, se quiserem, que “guinchem”. Como provavelmente “guincharam” os alunos de uma escola particular em que ela ensinava os grandes princípios da sua filosofia, quando foram apanhados por caçadores e Salta-Pocinhas se “esgueirou” pela “porta da traição”.
Velha, de resto, sim, e mesmo surrada, entrevada, desdentada, reduzida a esmolas e expedientes. Só que, nem na última extremidade, Salta-Pocinhas se rende e regenera. Pelo contrário, requinta. É uma viúva alegre, que frequenta festas dúbias com raposões casados e que evidentemente as fêmeas domésticas odeiam. Junta-se ao seu pior inimigo, o lobo, para o explorar e meter em sarilhos. E acaba por conseguir que os outros bichos lhe paguem uma reforma, com a mais abominável das falcatruas.
Aquilino Ribeiro achava que o Romance da Raposa era um livro adequado a crianças de 10 anos. Não sou capaz de imaginar porquê. Mas, julgando por mim, sem dúvida que é. Quando depois li os romances “para adultos” do “mestre”, a sua tão admirada prosa pareceu-me (e continua a parecer-me) um horroroso crochet provinciano, que cresce em direcção a coisa nenhuma e revela apenas a sua essencial vacuidade.
Com a sua métrica de cantilena, as suas rimas internas, as suas sistemáticas aliterações, a história de Salta-Pocinhas, permanece um inadulterado prazer: a voz certa que fala do sítio certo. A voz da violência sem disfarce, da liberdade primordial, da alegria física de lutar e ganhar. Se a raposa tem saudades do seu raposo morto, não é de qualquer ternura cristã, mas de ir com ele à caça. E quem não invejará as “desaforadíssimas gargalhadas”, com que Salta-Pocinhas celebra as suas patifarias?
Como John Mortimer dizia do pai, devo agradecer a Aquilino ter-me deixado, depois do meu primeiro livro, sem a mais vaga noção de bem e de mal. É uma dívida inestimável.»
VALENTE, Vasco Pulido. “A noção de bem e de mal: Aquilino Ribeiro, O Romance da Raposa”. In: Às avessas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990. p. 45-47.
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Comentário de Pedro Mexia (no blogue Estado Civil) a propósito do que escreve Pulido Valente no antepenúltimo parágrafo deste texto:
«A doença infantil do direitismo é a “boutade”. Sobretudo no meio cultural. Sendo o “regime” de esquerda, o direitista aprecia acima de tudo as provocações gratuitas. Mesmo que sejam patetas.
Sou um assumido admirador de Vasco Pulido Valente; mas dizer, como ele disse, que Aquilino é um escritor “medíocre” não passa de uma “boutade”.
É normal que não se aprecie o estilo de Aquilino, os regionalismos cansativos, o pícaro programático, o virtuosismo exibicionista. Mas há que ter sentido das proporções e das palavras.
Dizer que Aquilino é um escritor “medíocre” é uma bojarda. Sobretudo vindo de quem já elogiou Clara Pinto Correia.»
http://estadocivil.blogspot.pt/2007/09/aquilino-2_19.html
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